Durante uma conversa com uma amiga e parceira em negócios, falávamos da necessidade de organizar melhor o orçamento para poder atravessar o ano de 2021, onde a incerteza deixada pelo ano de 2020 parece continuar a sua cavalgada.
Economizar para enfrentar despesas futuras, se programar para adquirir novas coisas e enquanto este diálogo prosseguia fiquei pensando em como a literatura abordou a questão da importância do dinheiro nas nossas vidas, e como perder o controle sobre como o recurso financeiro deve ser considerado, levou os homens a escrever obras maravilhosas, muitas delas não focalizadas na economia para bons propósitos, mas na obsessão maníaca, onde a avareza provoca o empobrecimento das identidades pessoais, a degradação das relações humanas, o esvaziamento do interior humano, devido à adesão mais inescrupulosa aos valores competitivos do mercado.
Decidi fazer um percurso no labirinto da literatura, tendo como fio condutor a avareza e onde ela pode conduzir o homem.
Desde os tempos antigos, a palavra avareza indicava o desejo excessivo de riqueza e o apego exagerado ao dinheiro. A figura do avarento (do latim avarum, mesma etimologia de avidus) sempre foi objeto de grande interesse de escritores e poetas, tornando-se objeto de ridículo e sátira.
Com o cristianismo, a avareza passa a fazer parte dos sete pecados capitais.
Amar excessivamente a riqueza é uma coisa que acontece em todos as faixas da sociedade. O dinheiro adquire um valor em si e leva o avarento a levar uma vida desprovida de prazeres concretos, onde o único objetivo é acumular.
O “mesquinho” está presente desde a mitologia, como na lenda de Creso, condenado pelos deuses por sua avareza de ver tudo em que toca virar ouro.
Plauto foi o primeiro a criar um tipo que é quase a encarnação da avareza, um personagem grotesco, que então teve uma grande presença em várias literaturas europeias e que pode ser considerado o protótipo do avarento. O dinheiro como razão de viver, como pensamento dominante em que se escondem a dúvida e um medo incômodo do futuro é o tema que Plauto desenvolve em tom cômico, baseado em um modelo quase Menandreo, uma comédia muito viva: “Aulularia “.
O avarento de Plauto é chamado Euclione. É tacanho, ganancioso, desconfiado, neurótico: escondeu um pote cheio de ouro em um lugar secreto sobre o qual vigia obsessivamente, inquieto e alienado de qualquer outro interesse, a ponto de criar ele mesmo as condições para o temido roubo.
Desde a Divina Comédia de Dante, segundo o qual os gananciosos são punidos em primeiro lugar pela ofensa direta a Deus, passando por Giovanni Boccaccio que decide dar ao avarento um lugar como protagonista usando a classe mercantil desprezada por Dante e ignorada por Petrarca. Ele considera este vício como a negação mais total de toda bondade e virtudes, causa do entristecimento da sociedade, e lamenta a falta da generosidade desinteressada da civilização.
Shakespeare no seu Mercador de Veneza destaca a nova figura do usurário, rude e cruel, tão apegado ao dinheiro que reduz à miséria quem a ele recorre em busca de ajuda.
Com o final dos anos 1500, o avarento também emigrou para a França e com Molière assumiu um papel essencial. Na peça L’Avaro, de origem plautiana, o protagonista é Arpagone, um rico viúvo de classe média que não trabalha para um bom propósito, mas prejudica seus filhos para ganhar algum dinheiro.
Seguindo com o passar dos anos, chegamos ao final do século XIX, quando nasce uma nova corrente literária: o Verismo, do qual Verga é o maior expoente. Várias vezes em suas obras a figura do avarento e o conceito de materialismo são encontrados. Entre as Novelle Rusticane encontramos La Roba . A expressao “la roba” em italiano está para “as coisas” e entre as suas muitas aplicações, neste caso se refere a propriedades, bens. La Roba É a história de Mazzarò, um camponês que enriqueceu com trabalho e sacrifício; Mazzarò é apresentado como um homem baixo, com uma grande barriga e uma cabeça em forma de diamante. Ele de maneira muito astuta, apesar de rico, passa-se por pobre, vestindo roupas velhas e fora de uso e comendo o mínimo para sobreviver para acumular o máximo de “coisas” possível.
Outra peça de Verga é a assim chamada I Malavoglia, onde tudo é baseado no mundo do interesse. O romance conta a história de uma família de pescadores. Para melhorar suas condições, os Malavoglia decidem negociar tremoços, tomados a crédito pelo usurário Tio Crocifisso. Infelizmente, Providência, o nome do barco que transportava os tremoços, afunda com a carga e com um membro da família. As longas vicissitudes e sacrifícios dos Malavoglias para pagar dívidas e evitar o colapso começam a partir daquele momento! O avarento neste caso é representado pela figura do Tio Crocifisso, um agiota. Sua personalidade amarga se faz notar sobretudo quando o barco Providência não retorna, e enquanto os membros da família Malavoglia se preocupam com a vida de Bastianazzo, nome do rapaz que estava a bordo do barco, o tio Crocifisso pensa na carga de tremoços.
Chegamos aos nossos dias, onde o avarento ainda está presente, muitas vezes como protagonista, nos acontecimentos cotidianos, e se torna repetidamente objeto de sátira e comédias para entreter jovens e velhos.
Mesmo que o teatro hoje não seja tão frequentado como tempos atrás, até para as crianças, leem-se historias do Tio Patinhas, o tio mais rico e mesquinho de todos os tempos.
Na literatura brasileira a avareza está muito bem representada na figura de João Romão, personagem criado por Aluísio de Azevedo na sua obra O Cortiço. João Romão é um imigrante que tenta enriquecer a todo custo. Inicialmente, o personagem é dono de uma pedreira e de uma venda, mas consegue comprar algumas casinhas e, por meio do furto de materiais de construção, vai aumentando a quantidade de imóveis dos quais passa a ser dono e João Romão também explora seus empregados em busca de seu enriquecimento pessoal. Devagarzinho ele ergue o seu próprio império em um cortiço.
Os personagens criados ao longo dos anos nos mostram falta de esperança, escassa ou total falta de generosidade em relação aos demais. Embora estes demonstrem muita astucia, assumem a forma de anti-heróis, que utilizam a inteligência de modo não inteligente;
Se por um lado temos exemplos de avareza na literatura, por outro existem exemplos belíssimos de textos que tratam com maestria a generosidade.
A parábola do Bom Samaritano é o exemplo maestro de generosidade aplicada por excelência, um fazer o bem sem olhar a quem que atravessa seculos e cuja mensagem continua atual.
Na sua obra-prima “Os Miseráveis”, Victor Hugo, nos ajuda a entender a força que um gesto de generosidade tem. Jean Valjean è um dos protagonistas, que solicita ajuda de um Monsenhor, visto ter passado anos na cadeia por roubar pão para dar de comer aos seus sobrinhos, filhos de sua irmã que não tinha o esposo. No entanto, Jean Valjean não consegue encontrar trabalho, pois as pessoas o julgavam mal por ser ex- prisioneiro por isso ele retorna a vida de antes, roubando a prataria da casa que o havia acolhido. Graças ao gesto nobre, e de grande generosidade da parte do Monsenhor, Jean Valjean não volta para a cadeia e decide mudar de vida, a sua mudança foi tão grande que impactou de modo positivo a vida de tantas pessoas.
O escritor alemão Hermann Hesse escreveu que “A vida de um homem puro e generoso é sempre uma coisa sagrada e milagrosa, da qual são liberadas forças sem precedentes que operam mesmo à distância.
A generosidade está no gesto, livre e gratuito. No compartilhar o que se têm sem ficar esperando obter retorno daquilo. E’ uma gratuidade espontânea, gerada do fundo do coração, impelido pelo desejo real de ajudar.
A vida é como estar num restaurante, ninguém sairá daqui sem pagar a conta. Gestos de generosidade geram generosidade, é um círculo virtuoso ao qual somos chamados a dar continuidade, ainda mais agora, momento assim tão complicado que estamos todos vivendo.
Podemos ser generosos ao ser disponível a escutar, no ajudar de modo concreto e real dentro das nossas possibilidades. A verdadeira generosidade não deve ser confundida com falsa caridade. A generosidade que provem do coração impele a ação, mas não requer nada em troca.
Se por um lado é necessário ter a devida prudência ao lidar com os aspectos financeiros da vida, por outro lado, usar sabiamente os recursos financeiros podem nos ajudar a não nos desviar do caminho da generosidade. A vida está cheia de histórias reais onde a avareza corroeu o coração de alguns, mas também existem boas historias de gente que plantou generosidade no jardim da própria vida. Cabe a nós decidirmos que jardim cultivar, com o que o regar.
*Este artigo é resultado da parceria entre Dantonelli Consultoria – Brasil, com Eliandra Rocha de Ely Carter – Cartas e Contos – Itália – https://www.elycarter.com/blog.